Hoje o OBA Gastronomia traz uma crônica bem humorada de minha escritora preferida, a Fal Azevedo. Depois de lerem, verão porque eu adoro a Falzinha.

Um franguinho ou dois

Meus avós maternos eram funcionários públicos.

Isso quer dizer que eles eram pobres, lutavam com um orçamento inacreditavelmente restrito, tinham mais de um emprego cada um e economizavam cada tostão.

Isso quer dizer também, que eles criavam galinhas. Isso. Em plena São Paulo, em pleno Jabaquara, até o começo da década de 1990, havia galinhas vivas e gorduchas na rua Vitoriana, lá no Jabuca (ou Jabaquara, para os não iniciados).

Seu José Menino criava, cuidava, vacinava, ia sei lá eu onde comprar ração e vitaminas e umas coisas exóticas que galinhas comem (quem diria), lavava galinheiro e gaiolas e falava com elas. Eu gostava desse pedaço, porque ele era meu avô e qualquer coisa era boa de fazer com ele, até ir à missa (Ele, espírita e comunista, eu, criada por dois ateus de marca maior. Mas o velho me pegava pela mão de quando em vez e me carregava pra missa, porque ele achava que era uma boa. E me botava na fila pra comungar. E quando eu contava em casa e minha avó tinha um chilique – ela sim a única católica de verdade da família – e o velho nem ligava “Cida, Jesus ama as criancinhas”. Fim de papo). Enfim, eu iria a qualquer lugar e faria qualquer coisa com o meu bom avô José Menino, só para estar ao lado dele. Vamos dizer que lavar galinheiro não era bem o meu programa favorito. Mas, né. De galochas vermelhas e vassoura em punho, eu ficava bem ali ao lado dele, enfrentando aquele mar de titica. O amor, ah, o amor.

E daí, de domingo comia-se pasta. E frango assado. Os historiadores me odeiam, uma das poucas coisas na qual todos concordam é que sou um ser abjeto, mas tenho eu cá uma teoria. Sim, leitor do OBA!, mais uma. Acho que o Império Romano foi o que foi, não por causa do exército, da cultura, da organização ou da capacidade de enfiar porrada. Eu acho que o Império Romano foi o que foi porque não tem raça no mundo mais mandona do que italiano. Minha família tem uma pequenina parte de índios. Outra pequenina parte de franceses. Uma enorme parte de espanhóis. E uma enorme parte de italianos. Conta pra mim em que fim de semana nós saboreamos um puchero, uma tapioca ou um poitrine de veau farcie aux olives. Nunca. Nunquinha. Névis. Família que tem sangue italiano, cabou democracia.

Mas eu ia dizendo, na casa da velha, aos domingos, pasta e frango. E ela fazia a massa e o molho do zero, porque né, que nojo macarrão de pacote, que nojo molho de tomate da lata (tenho nojinho até hoje, pode me crucificar). E que nojo vezes mil de galinha de açougue. Credo. Sabe Deus aonde aquela galinha andou, leitor. Ninguém jamais retrucou a lógica nojística da minha avó.

De quando em vez, a velha, que era técnica de laboratório, dava plantão de sábado para domingo. Vai daí que não dava tempo de fazer a pasta. E como já explicamos que não existe coisa mais suja, horrorosa, demoníaca e pútrida do que macarrão de saquinho, o almoço em vez de macarronada, era de arroz, feijão, purê, salada de tomate e galinha. Ah, sim, porque não importava que a velha não tivesse dormido nem duas horas. Ela estava sempre bem disposta para matar alguém. Digo, uma galinha.

Eu nem gostava tanto assim de coxa, mas era uma ofensa recusar, dois netos, duas coxas, Deus usava o cadáver da galinha que minha avó tinha acabado de degolar, despenar e cozinhar para fazer alguma espécie de declaração, algo sobre justiça, um mundo igualitário, divisão justa dos bens e um alerta contra a soberba, a ganância e os perigos dos ataques de riso à mesa, que faziam com que o vivente engasgasse e a coca-cola saísse pelo nariz. Portanto, eu esticava o prato, aceitava aquela coxa suculenta, a parte que me cabia naquele galinhafundio e pedia mais purê. Ah, sim, porque nós comemos batata com arroz né, genza, que carboidrato nunca é demais. Ou é, mas estamos em negação.

Conheçam o Drops da Fal!

Orlando Baumel

Chef de Cozinha, músico e sócio do site junto com a Carol. Casado, pai de 3 lindas garotas.

Este post tem 2 comentários

  1. Onde me indicam leitura de escrita da Fal, lá estou eu. Fã de carteirinha. Ri muito, marido ouvindo, perguntando o que era, eu lendo alto e ele se deliciando!

  2. Ahab

    Não é a toa que o brasileiro é um feito por um só povo, uma só nação, somos todos essas misturas. Na minha casa é desse jeito, as galinhas, a igualdade, o cristianismo, as descendências…

    Também existe a ritualização na hora de criar as ave até levá-las à carcaça. Sem duvida uma alimentação pragmática que despertaria a atenção até dos romanos.

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